sexta-feira, 3 de novembro de 2017

tia lena



já arranjou o meu saco, Elisa?; não se esqueceu do meu saco, não?; assim foste repetindo ao longo do dia. e, na manhã seguinte, continuaste; não me desaperte a camisa, Elisa, temos de ir apanhar o comboio!; e para onde vamos, menina?; eu não sei, Elisa, a Maria Arminda é que mandou!

e assim foste, tia lena, no teu recato habitual, como se não quisesses incomodar ninguém na tua partida, e apanhaste esse comboio que a avó mandara.

sei que levas a bagagem cheia, de uma vida que entregaste aos outros, com a tua ternura infinita e o teu sorriso discreto. sei que na bagagem levas um bocadinho de nós, de todos os que tivemos a sorte de partilhar contigo as nossas vidas. 

mas fica também tanto de ti connosco. ficam as vezes que encontrámos conforto no teu colo; ficam as noites passadas lá em casa, na cama ao lado da tua, com a Rosinha, a boneca que dava gargalhadas; ficam as férias, as primeiras idas à praia, o carinho; ficam os dias da escola primária, em que nos esperavas à porta, tantas vezes apenas para nos acompanhares nos 200 metros até casa da avó; ficam as tardes em dia de catequese passadas contigo, lá em casa; ficam as tuas palavras e o teu sorriso, de uma doçura imensa, quando nos falavas do nosso amigo jesus; ficam os lanches que a Elisa nos preparava; fica o teu amor pelas bonecas, pelas caixinhas, pelos pacotinhos de açúcar, pelos porta-chaves, pelas caixas de fósforos e por todas as colecções - foi uma paixão que herdámos de ti; ficam as flores de que tanto gostavas; ficam os cães que fizeste sempre questão de manter por companheiros; ficam os dias passados a fazer esculturas de plasticina; ficam os almoços de domingo em tua casa; ficam as noites de natal e os dias de festa em nossa casa; fica aquele prémio de dança que há anos ganhaste no hospital; ficam as idas ao picoto e o teu sorriso ao olhar de cima a cidade; ficam as nossas conversas, já mais recentes, sobre os meus meninos da catequese; fica a tua alegria ao rever, nos últimos anos, os filmes da nossa infância; fica a tua presença, sempre tão inteira, sempre tão conciliadora, sempre tão carinhosa. e ficamos nós, nós que tanto crescemos graças à tua dedicação e ao teu carinho, nós que sempre te olhámos como um modelo e que te continuaremos a levar connosco aonde quer que formos.

agora partes nesse comboio, no lugar ao lado da avó. sei que partes em paz. sei que estavas preparada para esta viagem e estás certamente sorridente, a olhar por nós, como sempre fizeste.

boa viagem, tia lena. vamos sentir muito, mesmo muito, a tua falta.

domingo, 11 de setembro de 2016

una

fez, na passada sexta-feira, um ano de que a una, uma das autoras mais antigas deste blogue e uma boa amiga, partiu.
ficará sempre guardada no mais fundo dos nossos corações, pelas palavras, pelos sorrisos, pelas recordações.

por tudo, una, muito obrigado.




se, no silêncio, te tentasse recriar,
como se houvesse ainda um gesto teu,
como uma onda que rebenta e volta ao mar,
como um livro que ainda não se leu...

se, no silêncio, te pudesse encontrar,
como uma brisa de que a morte se esqueceu,
como se a noite fosse apenas o lugar
onde o teu corpo, cansado, se abateu.

talvez ainda te pudesse ver sorrir,
nesse teu sorriso aberto e cristalino.
como uma porta com receio de se abrir,

ficam as letras que juntaste em desatino;
e, para aqueles que a quiserem ouvir,
haverá sempre a música do teu violino.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

amanhã a festa é outra

Como é que dizes a alguém que não te quer que não sabes como não querer? Como é que lhe dizes que vais esperar e não sabes como não contar todos os segundos que faltam, mesmo quando não sabes ao certo quanto tempo falta? Como é que te preparas para apagar tudo aquilo que fizeste questão de ir deixando entrar? Como lhe explicas que demoraste mas que finalmente lá chegaste? mas já não está lá ninguém à tua espera, sabes que mais? o comboio já partiu, e anda em sentido contrário ao teu, tu queres mais, mas já não há lá nada para ti. E eu sei que dói, mas não queiras meios amores, não queiras metade da atenção, se queres muito, pelo menos quer por inteiro, quer que te queiram com tudo, ou no mínimo, tanto quanto tu. O barco tem dois remos, mas têm que se mover ao mesmo tempo ou então não sais do lugar, por isso, pega nos dois remos e começa a remar, mas para o teu lado. Amores sozinhos não valem a pena, têm prazo de validade, e mais curto do que tu pensas. Não te vou mentir, dói mudar de direcção, mas dói tão mais acordar no lado errado da cama.
Tenho que te dizer que ele não gosta de ti, ou então não sabe gostar. Devias ter-lhe ensinado que as coisas não se dizem da boca para fora, do outro lado está uma pessoa que tem sonhos, que tem planos, que tem um coração à espera de ser amado da forma certa. Mais uma vez, tenho que te dizer que não vale a pena, por isso princesa, tu sabes como se faz, já não é a primeira vez, levanta a cabeça, sorriso no rosto, e amanhã a festa é outra.